sábado, 19 de maio de 2007

Limpando teias de aranha...

Dia 1 de Abril – Dia das Mentiras - Sábado

7h
Ela acordou ao som de um despertador estridente e histérico, porque naquele tempo não tinha daqueles que nos acordam suavemente e nos deixam acabar o sonho.
Abriu os olhos, sorriu, lentamente foi-se espreguiçando como um gato depois de estar muito tempo deitado ao sol.
Sentiu que finalmente o seu SOL iria nascer naquele dia.
Olhou à sua volta, sentiu um aperto no peito, olhou a sua irmã que ainda dormia na cama ao lado, olhou as paredes, os bonecos de peluche, apertou de encontro a si o ursinho amarelo que a acompanhava há mais de 20 anos.
A última noite naquele quarto tinha finalmente desaparecido e pelas frestas das janelas entravam agora os primeiros raios de uma manhã linda, daquelas com um céu azul, um perfume de Primavera, que nos deixam bem dispostos e em que apetece fazer algo de diferente.
Saltou da cama num pulo e foi tomar um duche rápido mas revigorante.
Sentiu-se quase feliz.

7h30
Engoliu um copo de leite à pressa saiu de casa, foi tomar a sua bica matinal e entrou no cabeleireiro, onde uma equipa de profissionais a paparicou naquelas primeiras horas do dia.
Teve tudo a que tinha direito: uma lavagem de cabeça mais cuidadosa com o objectivo de revitalizar e diminuir o stress dos fios capilares (modernices); arranjo de pés com direito a uma massagem mais prolongada que o habitual; as suas mãos ficaram bem macias com as unhas compridas e reluzentes; foi maquilhada cuidadosamente, realçando os seus pontos fortes e escondendo algumas marquinhas da agitação dos últimos dias.
Ficou com um "ar natural" e bem cuidado, o cabelo penteado, apenas apanhado por um travessão com 3 rosas de tecido.
Sentiu-se por momentos uma princesa, é certo que vestida de calças de ganga com uma camisa largueirona e uns ténis já surrados, mas por dentro princesa.
Lembrou-se da frase feita "o hábito não faz o monge" e esboçou um sorriso.

9h
Entrou de novo em casa e sentiu o reboliço da sua irmã e da sua avó que se arranjavam, contrastando com a calma vinda dos outros quartos.
Por estranho que possa parecer não se sentiu triste, nada poderia estragar aquele que seria o seu dia.
Lá fora esperava-a uma nova vida. Finalmente o Futuro chegara.
Foi para o quarto, fez a cama, fechou a mala com as últimas roupas, o livro de cabeceira, o seu ursinho amarelo e foi revendo os momentos passados naquele quarto, naquela casa, onde anos atrás tinha sido feliz, mas que ultimamente se tornara o seu refugio quando queria estar sozinha, hibernada no seu mundo.

9h30
Saiu do quarto, lançando o último olhar a tudo o que ia deixar encerrado dentro daquelas quatro paredes. Suspirou e fechou a porta.
Percorreu o corredor com a mala numa mão e um cabide na outra, onde o vestido cor de rosa balançava imponente e provocador (por tudo o que representava). Chegou ao hall de entrada, encheu o peito de ar.
Segurou com esforço as lágrimas que ameaçavam estragar o seu "ar natural", conseguido por mãos com pincéis que tinham deslizado numa paleta de cores, para rostos felizes.
Espreitou pela porta da sala, onde na penumbra estavam sentados e calados dois corpos envolvidos num silêncio irreal que a deixou gelada.
Ficou confusa.
Por segundos à sua cabeça assolaram milhares de frases feitas e ensaiadas, para aquele dia, ao longo das últimas horas. Não foi capaz de proferir nenhuma.
As suas pernas tremeram a angústia e a revolta aceleraram o seu coração perante aquela situação caricata. Deu um passo em frente, encarou-os olhos nos olhos e disse numa voz que não a abandonou por milagre: "Adeus, até um dia...".

Não se lembra da resposta, ou ainda não se quer lembrar.

Só sabe que a porta se fechou atrás de si e um misto de sentimentos inundou-a enquanto saía até à rua, se enfiava no carro que a conduziria a casa de sua tia que abria as portas para a receber a si, e a todos quantos não a quiseram deixar só nesse dia especial.

9h45
Do Campo Pequeno a Alvalade olhou a sua Lisboa, as ruas, o parque, os prédios, o Santo António, as pessoas que passavam na rua e imaginou quantas histórias haveria, debaixo daqueles rostos pincelados com um "ar natural".

11h
Estava pronta de corpo e alma.
A maquilhagem retocada, o cabelo e o vestido por si desenhado, irrepreensíveis. Nas mãos um bouquet muito simples em tons rosas, disfarçava o tremor das mãos. Olhou o espelho e gostou do que viu, principalmente do que estava por dentro.
Respirou fundo, levantou a cabeça e avançou decidida em direcção a ele que a esperava sorrindo.
Hoje era o dia do seu verdadeiro CASAMENTO, apesar de ser também o dia das mentiras.

Finalmente sentiu-se em paz, encerrando um episódio da sua vida e recomeçando outro.
O Conservador estava num dia feliz, saltou as partes burocráticas citou Fernando Pessoa e outros poetas, olhou-os nos olhos e disse-lhes que aquele era um casamento especial, diferente de todos os outros!

E ela acreditou....

Dezoito anos se passaram e ela sabe que aquele dia, foi mais um "Dia das Mentiras"!

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